A senhora no Café

Muitos acham que o horror da guerra está nas mortes, outros que está nos corpos mutilados, muitos tantos na destruição de cidades inteiras, mas para quem está lá, para quem ve refletir em seus olhos o terror, sabe que nada disso se comparar ao fogo. Ainda que o inverno que se aproximava tentasse amenizar o calor que tomava conta de Varsóvia o bafo putrido da destruição se alastrava para todos oa lados, ainda que a carniça dos mortos que se amontoavam não fosse suficientemente terrível para enojar a qualquer um, o fogo assava as carcaças jazentes nas ruas e nos campos de batalhas, espalhando o odor da morte insana da guerra. Os soldados que se matavam, os pilotos que jogavam as bombas, eles não odiavam os poloneses, eles não odiavam os outros soldados, eram apenas peões do xadez diabólico que Hitler iniciara já há alguns anos. No campo de batalha, eram todos iguais, eram todos objetos sacrificáveis. Antes perder um piloto, do que um avião.
Era nessa realidade conturbada em que duas almas enamoradas se enconttravam, poucos segundos foram necessários para que a distância entre eles desaparecesse enquanto as lágrimas corriam soltas pelo rosto de Amélia enquanto Henrrich tentava protegê-la em seus braços. Poucas horas teriam juntos, e muitas coisas a serem ditas pairavam no ar. Acusações nos olhos dela, preocupação e uma selvageria antes desconhecida nos olhos dele. A guerra transformava as pessoas, e não foi diferente com nenhum dos dois.
O plano de Henrrich era simples e executável, na opinião dele, para ela era como arrancar a própria honra e deixá-la para traz como se nada fosse, mesmo que pouco demonstrando, ela sempre fora uma idealista, sempre buscara lutar pela justiça, e agora negaria tudo por ele? O amor que sentia explodir dentro de si teria que ser colocado na balança com todos os seus valores. Ele passara o último mês organizando um modo de naturalizara alemã, e manda-la em segurança para uma cidade que não fosse estar no foco de guerra. Ela passaria todo o tempo necessário em segurança, ele enviaria soldados para verificar sua segurança semanalmente, para abastecer a casa com mantimentos.
Teria de negar sua pátria, seu sangue, sua família, teria de se tornar Amélia Hartmann, esposa alemã de Henrrich. Não que antes ja não tivesse a certeza de que casaria com ele, mas agora tudo se colocava em duvida, tendo em vista que desde o primeiro dia de guerra tinha convicto dentro de si o objetivo de se alistar como enfermeira voluntária das forças armadas polonesas. Seu coração era um amontoado de confusos sentimentos antes jamais experimentados. Porém ele a tomara nos braços, seu beijo consumiu qualquer dúvida, tudo que queria era ele, nada mais importaria se ele voltasse em segurança para ela.
Dentro de dois dias ele voltaria e a levaria para a Alemanha, fugiria da guerra, fugiria como uma covarde, à mando de seu coração.
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A senhora no Café

"Volte para a casa do campo, o mais breve possivel. Com Amor. Henrrich" Dois meses sem qualquer noticia e era tudo o que ele tinha a lhe dizer? Seu mundo havia desabado em sua cabeça no instante em que ele partira, seu coração parecia quebrar mais e mais a cada dia que se passava sem nenhuma noticia. Tudo havia se passado em sua imaginação; ele podia ter uma familia em Berlim, podia ser casado e ter filhos, podia ter sofrido um acidente, podia ter morrido em combate, como saberia? Ela não era nada oficialmente para ele. Não passava de uma bela história primaveril, efêmera. Lágrimas secaram de tanto escorrer, seu coração e sua alma congelavam junto ao inverno que se aproximava da Polônia. Continuara seu curso de enfermagem, todas as veteranas concordavam que ela tinha mãos de fada. Um forte pressentimento em seu coração dizia que iria precisar disso em breve. Faltava pouco mais de um mês para completar 19 anos, e já tinha as responsabilidades de uma mulher. Estava trabalhando no hospital municipal de Varsóvia, Henrrich deixara um dinheiro para ela, mas estava tentando se manter sozinha. Tentava se recompor do choque que era estar sem ele. Era como estar longe de si mesma. Agora estava ali, desorientada com mais lágrimas umedecendo seu rosto pálido numa manhã gélida de domingo. Suas mãos tremiam, pois o pressentimento em seu coração lhe dizia para ter medo. No mesmo dia juntou suas malas, arrumou-as, e partiu no carro de uma amiga do hospital para a casa do campo, era dia 28 de agosto de 1939, os últimos dias de paz dos proximos cinco anos. As memórias de Amélia desses dias que seguiram são confusas. Talvez o terror que seguiu ofuscou as memórias que deveriam estar claras ali. Foi em primeiro de setembro que o bilhete que Henrrich lhe mandara fez sentido, ao mesmo tempo em que todo o resto de sua história ao lado dele perdera o sentido. A Luftwaffe, com o tenente Henrrich Hartman à seu comando invadira a Polônia de surpresa, bombardeando mais da metade da cidade de Varsóvia por ar, e atacando por terra, sitiando a cidade em questão de horas num ataque sem chances de defesa. Quem não era vivo em tal época, como eu, jamais saberá com exatidão o que era ver a força negra da grande guerra mais uma vez tomando a Europa. Cívis mutilados na rua, e o ataque fulminante não parava, rechaçados corpos se amontoavam pela capital polonesa, o exército polonês tentava reagir, mas não era nada se comparado ao poder da Luftwaffe, a organização, e as táticas elaboradas durante anos pelo Terceiro Reich. Seria impossível uma reação tão rápida dos Aliados a ponto de conter Hitler. Durante dois dias, dois torturantes dias, Amélia permaneceu ouvindo tudo isso pelo rádio, ouvia que alguns aviões alemães eram abatidos, e chorava, e sentia seu peito apertado, ao mesmo temppo que sentia raiva, ele estava ali espionando o poder de guerra polonês, todos os dias em que ele não voltava, era isso que estava fazendo, ajudando a Alemanha a destruir a sua nção. Mas ela jamais fora uma covarde, por mais que soubesse de todo o risco, ela voltaria para Varsóvia, e se alistaria como enfermeira voluntária no exército polonês. Ou era o que deveria fazer, tentava fazer. Até reencontrar os olhos de seu amado. A casa do campo era a alguns quilometros de Varsóvia, e ficava em meio a uma grande campina deserta. Foi ali que o Messerschmitt Bf 109 Emil da força aérea pousou em 3 de Setembro, no entardecer, e ele saiu do avião. Parecia vários quilos mais magro, abatido, com um grande sorriso ao reencontrar Amelia a salvo, porém a preocupação tomava conta do oceano congelado que eram seus olhos.


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Henrrich Hartmann
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A senhora no café - Parte VII

Ainda que tivesse certeza que toda a felicidade que explodia diariamente dentro de si logo seria arrancada, Amélia mergulhou sem medo no amor que sentia por Henrrich. No dia em que ele a pedira em casamento decidiram alugar uma casa no campo, para passarem cada instante que lhes restava juntos. Não existiriam palavras para descrever como em tão pouco tempo uma mulher poderia ser da mais feliz a mais derrotada do mundo, mas era o que acontecia com Amélia. Eles eram noivos, e passavam cada dia planejando o nome que dariam a seus filhos, as cores que dariam as paredes de sua casa, a posição do sofá e da lareira, os padrinhos, as flores na decoração do casamento, e ela passava as noites aninhada no peito dele, sonhando que fosse eterno, imaginando como seria se ele fosse um homem qualquer, e não um oficial da Luftwaffe. E em seus sonhos, todos os seus planos se realizariam.
Mas o tempo jamais fora piedoso, e a realidade não se transformava porque jovens estavam apaixonados. Nem o destino da Alemanha seria outro. E os dias que restavam antes dele partir se esvaiam como água entre os dedos.
"Os dias nasciam quando eu via seus olhos azuis ao meu lado,a me observarem. Os raios de Sol que ultrapassavam as arvores em torno à casa em que estavamos vivendo iluminavam seu rosto de anjo, suas mãos em contato com minha pele eram como o toque de uma rosa, ninguem que jamais tenha amado será capaz de entender o arrepio que percorria minha espinha a cada instante que sentia ele junto à meu corpo, mais que isso, sua alma unida a minha, e nossos lábios não queriam se afastar sequer um instante, como se pressentissem nosso destino separados, e nossa pele em contato era como a chave e a fechadura feitas uma para outra, pois nenhum corpo seria como o dele, nenhuma carícia me faria sentir como que deitada em nuvens do paraíso infindo do amor. Nos amamos todos os dias, e todas as noites que nos restavam juntos. E riamos e conversavamos sobre muitas coisas, mas jamais sobre o futuro próximo. Seu cheiro grudou em minha pele de tal forma, que jamais poderia esquecê-lo, misturado ao cheiro do café forte que ele preparava pelas manhãs e levava a mim, misturado ao cheiro de orquídeas silvestres que adentravam à janela, e ao cheiro de terra umedecida pelo orvalho matutino. Como se pode esquecer a perfeição? Como se poderia comparar alguém, que sempre seria o primeiro?"
Você já se sentiu como se todo o seu chão fosse arrancado de baixo de seus pés?A pólvora tomou o lugar da terra que deveria existir sobre seu mundo, no instante em que o automóvel de Henrrich deu a partida, o pavil que explodiria seu universo acabou, e tudo que restaram foram lágrimas, que não findavam. Era só o vazio a sua volta, pois tudo que via fazia parte dele, todas as suas lembranças pareciam de alguma forma levar até ele, desejou por dias, ardentemente ter morrido e jamais tê-lo conhecido. Desejou que o maldito carro realmente a tivesse atropelado, pois a tristeza que rasgava sua alma a todo instante a sufocava e a matava devagar. Nenhuma carta chegara, mesmo que o Sol iluminasse o céu, seus dias pareciam cinzentos, exatamente da mesma forma como no primeiro dia em que o vira.
Decidiu depois de um mês que Henrrich partira que voltaria para a cidade, voltaria para o curso de enfermagem, e esperaria que ele voltasse para seus braços, mesmo que tal espera durasse toda sua vida.
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A senhora no Café - Parte VI

Era tão necessário fugir dele, que o imã que os unia parecia cada vez ter mais força. Forças contrárias se atraem, é uma lei da física, e aqui, uma lei do amor. Seria lindo, se não fosse tão estritamente trágico. Inevitavelmente a carta que ela esperava jamais chegar estava nas mãos de Henrrich, com o emblema simbolo do partido nazista. Ele ainda não abrira, mas as lágrimas já corriam pela face de Amélia. Ela estava agora entre seus braços mas era como se já o sentisse partindo. Aquele oceano congelado que era os olhos dele estavam agora a poucos centimetros dos seus, mas o que ela realmente sentia eram seus lábios tão proximos que sentia seu respirar. A mão dele segurava com firmeza seu rosto trêmulo, úmido por suas lágrimas, quando numa onda repentina de paixão acompanhada de uma furia que ela jamais vira ele a tomou num beijo.
Nenhum beijo que ela sentira antes podia ser comparado com este, era tão carregado de sentimento que a deixara paralisada por alguns instantes, todo seu corpo amolecera mas ele a segurava pela cintura com tal firmeza que mesmo que ela estivesse morta ele não a deixaria cair. Até que todo o sentimento que ela estivera reprimindo por todos esses meses ao lado dele se manifestou. Ela o segurou com tal urgência como se assim pudesse impedi-lo de partir. Seus lábios se encaixavam e suas bocas se exploravam como se jamais fossem se soltar, era único.
Depois de instantes que pareceram séculos seus lábios se afastaram aos poucos, mas seus olhos estavam unidos, suas almas estavam unidas como apenas alguém que já sentiu o mais verdadeiro amor, unido ao desespero da despedida poderia imaginar.
- Amélia, case-se comigo. Eu te amo, eu te amo desde o instante em que eu vi seus olhos pela primeira vez, te amo como nenhum home jamais te amaria. Não importa o que aconteça, case-se comigo.
As lágrimas corriam sem parar pela face dela, enquanto ela o abraçava com o sorriso mais confuso que já dera. Inicialmente o 'Sim' fora apenas um murmurio, até se tornar um grito cheio de desespero. Eles se amaram naquela noite. E a carta permaneceu fechada até a manhã. A preocupaçao, o desespero que antes tomara conta de Amélia haviam estado de lado naquelas horas em que novamente ela se sentira totalmente segura nos braços dele. Enquanto seus corpos e lábios eram um só. Mas o tempo não iria parar mesmo com a força desse amor. Nem a guerra seria adiada. Nem ele deixaria de ser alemao, ou ela deixaria de ser polonesa.

"Tenente Henrrich Hartman, seu objetivo na Polônia se torna inviável tendo em vista os novos interesses do Terceiro Reich. Em nome do Führer Adolf Hitler lhe convocamos para voltar à sua Pátria. Dentro de quatro semanas deverá se apresentar no 13º comando da Luftwaffe.
Sem mais."

Eram palavras breves, segundo Henrrich era uma questão de segurança das forças armadas alemãs manter poucas informações na correspondência, mas mesmo assim, aquelas poucas palavras foram capazes de acabar com toda a felicidade que reinara a poucas horas naquela casa. O coração de Amélia parecia ter sido arrancado por elas. Veio à tona em sua cabeça tudo que evitara conversar todo aquele tempo, o objetivo do Tenente Henrrich Hartman na Polônia, um ressentimento abateu sua alma, assim como o silêncio se abateu entre os dois por um tempo que para ela pareceram dias. Ela amava seu país, mas amava ainda mais aquele homem. Mas não sabia se ele também poderia amá-la mais do que ao Reich.
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A senhora no Café - Parte V

Alguns meses se passaram e era como se Henrrich estivesse em sua vida à anos, já não sabia mais como ficar sem ele e agredecia à Deus por o ter enviado para salvar sua vida, em todos os sentidos. Após a morte do pai Amélia começara a dar aulas de piano para as crianças da região, e todas as noites ele vinha visitá-la. E caminhavam sob as estrelas até chegar ao campo que havia ali perto, conversavam por horas, ela gostava de música, e ele dançava tão mal como se fosse feito de concreto, ela sabia o nome das estrelas, e ele dos aviões, pareciam tão diferentes, que eram completos juntos.
Amélia sabia da vida de Henrrich desde que ea um bebê, e como se alistou para o exército do Führer do Terceiro Reich em 1935, assim que a primeira Luftwaffe fora criada, em alguns anos ele se tornara um oficial lá. Mas nunca passavam desse ponto, ela preferia não saber porque ele estava ali, e ele preferia não falar, era como um pacto silencioso.
Não é como se ela jamais tivesse tido um namorado, quando adolescente dara seus primeiros beijos num rapaz que morava perto do apartamento que dividira com o Pai, mas com Henrrich era diferente, nunca haviam sequer se beijado e compartilhavam uma intimidade que jamais conhecera, talvez porque ela sempre estivera ocupada cuidando de seu pai, ou talvez porque o destino estivesse esperando para que tudo acontecesse desta forma, mas ele fora seu primeiro verdadeiro amigo, e aos poucos, mesmo que tentasse negar, ela sabia, que ele se tornara seu único amor. Mas ainda é muito cedo para essa parte desta história...
Ele deixara de usar a farda para ir buscá-la todas as tardes, inicialmente toda a vizinhança se assustara. As notícias corriam e as ambições do Terceiro Reich assustavam toda a Europa, o rearmamento alemão em 1935 alertara a todos, após a primeira grande guerra vários territórios alemães foram incorporados por outros paises, entre eles a Polônia, que se encontrava terrivelmente no caminho do Führer. As tropas alemãs já combatiam no Japão desde 1937 e a tensão se espalhava mais do que pelo continente, pelo mundo.
A cada dia Amélia podia notar isso nas feições de Henrrich, ele tentava se manter inexpressivo quanto ao assunto, e ela tentava fazer o mesmo, mas toda vez que um deles usava uma palavra errada que lembrasse isso os dois abaixavam o olhar e se entristeciam, era como se o próprio ar transportasse más notícias que eles tentavam ignorar, alguns dias ele sumia, mandava um bilhete, ou deixava um recado com alguma desculpa, ou simplesmente dizendo que não viria naquela noite, e mesmo que tentasse fingir, ela aos poucos tinha a certeza de que o trabalho dele ali estava acabando, de que ele a deixaria. E isso a apavorava.
Seis meses se passaram desde a morte do pai de Amélia, ela iniciara a algumas semanas o curso de enfermagem, havia sido uma sugestão de Henrrich no dia em que os dois haviam se machucado na cachoeoora. havia sido um tia mágico. Era domingo e haviam decidido fazer um passeio mais longo que o normal, prepararam juntos o almoço, colocaram suas roupas de banho por baixo e pegaram a estrada no automóvel alemão que ele sempre dirigira, em pouco menos de duas horas chegaramna trilha, o Sol brilhava alto e seus raios adentravam na clareira onde desembocava a grande cachoeira. Não havia mais ninguém ali. Ele sempre fora um nadador nato, enquanto ela mal saia do lugar com suas braçadas erradas.
No final da tarde a chuva forte de verão começou, mas estava quente, eles continuaram na água. A correnteza veio repentina e arrebatadora e a levou, menos de um quilometro a frente havia outra cachoeira, a queda à mataria, ele nadou como nunca antes, numa velocidade que ele não sabia que podia atingir, e a pegou, desmaiada por ter engolido muita àgua, mas viva, infortunadamente uma pedra pontiaguda perfurou a perna dele enquantos e aproximava da margem, mas ele a salvara, novamente. Ela tratou de seu ferimento como se suas mãos fossem de uma fada. E ele a convencera aos poucos à se tornar uma enfermeira.
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A senhora no café - PARTE IV

Era como mergulhar num oceano congelado, mil lâminas perfuravam seus ossos congelando-a, sentia como se uma parte de seu corpo tivesse sido arrancada, mas não como dor, como frio, cada centímetro de seu corpo congelara mergulhado na escuridão da profundidade. Nadava, mas não conseguia sair daquelas águas. Até que um raio de Sol perfurou a escuridão, um raio de realidade, lucidez talvez. Ouvia duas vozes masculinas distantes, seria seu pai? O que estava acontecendo? Queria falar com alguma daquelas vozes, mas seu corpo não a obedecia, a mente estava levemente consciente. Precisava emergir daquele ébano antes que não pudesse mais voltar. Se agarrou a uma daquelas vozes, lutou contra as ondas de frio que a percorriam e foi invadida por uma claridade repentina que machucou seus olhos desfocados. O ar entrava em seu peito como fogo, cada particula de seu ser formigava como se tivesse passado séculos na mesma posição. Quando focalizou o olhar a lembrança voltou a sua mente como num flash em super velocidade.
O pai morto, o enterro, as ruas cinzentas...os olhos azuis. Nessa parte suas lembranças eram turvas, estava num instante caminhando e no outro no chão, com aqueles olhos tão proximos dos seus. Era ele, o soldado que estava ali, usava um uniforme azul-acinzentado, talvez pertencesse a força aérea, no peito vinha escrito "Deutscher Luftverband " e o seu nome "Henrrich Hartmann", era alemão! Tinha o emblema das forças nazistas no braço. Amélia tentou levantar-se, não tinha forças, porque estava num hospital com um maldito soldado alemão? Ele então percebeu que a garota acordara, se aproximou ao mesmo tempo em que ela se encolhia. Ele sentou-se a seu lado no leito e sorriu, e ali ela se perdeu. Não sabia mais porque era 'errado' ele estar ali. Nem sabia que devia se preocupar por estar no hospital. So sabia que estava agradecida por ele estar ali sorrindo para ela.
- Que bom que acordou senhorita Schovoieski, estamos à três dias a te esperar! - Era a voz mais encantadora que já ouvira, não sabia porque, mas todo seu corpo parecia estar acordando, Amélia apenas admirou Henrrich Hartmann, sem saber que era o inicio de sua história.
- O que...aconteceu?
- A senhorita estava distraída caminhando quando um automóvel quase a acertou, felizmente consegui lhe desviar, mas me faltou jeito, e sua cabeça bateu fortemente no chão, eu a trouxe para cá, descobri seu nome pelos documentos na bolsa.
Levou involuntariamente a mão até a cabeça, havia sangue endurecido na parte de traz, e pontos, vários, um arrepio percorreu a sua espinha, voltou seu olhar para o soldado, questionando-se em pensamento o que faria? Não tinha ninguém, talvez se ele a tivesse deixado morrer... Não! Amélia não era assim, não era amargurada. Tentou se prender a alegria por estar viva, mas não conseguia, a única coisa que a prendia eram aqueles olhos ali, de um soldado alemão nazista.
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A senhora no Café - Parte III

Quatro de setembro de 1920, um dia de alegria e um dia de tragédia na família Schovoieski, a matrona da grande família falecera durante o parto de seu sétimo bebê. O Pai não sabia que ria, ou chorava. Tomou nos braços a criança, era como um gatinho, quietinha, como se sentisse a morte da mãe pelo esforço de lhe dar a luz. Naquele instante o Pai prometeu a si mesmo e a pequena Amélia que a protegeria do mundo, da guerra. A pequena tinha 4 irmãos, e duas irmãs, mas destes apenas um rapaz estava vivo, naquela época a medicina era falha, doenças que hoje podem parecer simples disimavam famílias inteiras, e a grande casa dos Schovoieski era habitada agora apenas pelo Pai e por Amélie, já que o Rapaz se casara já a algum tempo.
Os anos se passaram, através de dificuldades, mas sempre cheios de amor. Amélia crescia, tocava piano todas as tardes para o Pai, ele mesmo a ensinara a ler, ensinara latim, francês, piano, cozinhar, cuidar dele, porque estava ficando velho. Todos os cabelos de sua cabeça haviam caído, suas mãos antes fortes agora eram enrugadas e poderiam quebrar-se sem muito esforço. A primeira Grande Guerra passou, a casa grande se foi, mas o Pai e Amélia continuavam unidos, moravam agora num pequeno apartamento no centro da cidade, não tinha muito luxo, mas eles não se importavam. Ela era uma moça linda agora, mas também não se importava, era feliz, pouco saia, enquanto seu pai trabalhava na alfaiataria ela cuidava da casa, ela estudava poesia, e sonhava. Era para ser uma história de vida pacata. Era para Amélia ter se casado antes que seu pai morresse. Teria filhos, uma casa, um bom marido, engordaria, e envelheceria feliz. Mas há dias em nossas vidas que podem mudar tudo. E esse dia chegou na vida de Amélie.
O telefone chamava incansável enquanto ela saia correndo do banho para atender, o roupão branco encharcara com as gotas de seu cabelo, depois, com as gotas de suas lágrimas. O Pai morrera, uma parada cardíaca fulminante do trabalho. Tinha acabado de chegar no trabalho, e se tivesse ficado em casa? E se Amélia trabalhasse e não deixasse que ele saísse? E se... E se... durante um longo tempo sua vida seria cheia de E se's. Tinha apenas 18 anos quando ficou sozinha.
Vestiu roupas negras, colocou o chapéu sobre a cabeça e o veu negro sobre o rosto. Ainda que pareça estranho ela estava linda. A melancolia parecia combinar com seus traços. Seu coração congelara. Estava só, fria, sem saber o que fazer. O Irmão chamara ela para ir morar com ele, mas não queria atrapalhar, a mulher dele acabara de ter o primeiro bebê. Os tempos não estavam facéis, só iria atrapalhar. Ele se ofereceu para leva-la em seu carro para casa, mas do mesmo jeito, ela recusou, precisava pensar. Era outono, um dia cinza, um dia morto. Caminhou para fora do cemitério de olhos baixos, as lágrimas escorriam sem parar por seu rosto, deixando um leve rastro negro de maquiagem borrada. Não se sabe por quanto tempo ela caminhou por entre as ruas vazias da cidade, nada vira até aquele instante, quando em um centésimo de segundo alguém a jogara no chão para o lado. Só o que pode ver foram aqueles grandes olhos azuis tão perto dos seus que poderia confundi-los...
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A senhora no café. Parte II

Uma semana se passara e eu não conseguia esquecer aqueles olhos ternos me olhando ao me entregar aquele diário, não voltara ao cyber-café desde que a senhora morrera, ali, em minha frente, aquele brilho que eu nunca esqueceria, se apagara, junto ao último raio de um pôr-do-Sol. Sentada na sacada do pequeno apartamento observava a vista do parque, não era nada magnifico, mas era só minha. Alguns mendigos dividiam uma garrafa de vodka lá, algumas prostitutas se ofereciam para homens na rua. A Lua alta no céu anunciava oa dentrar da madrugada, e eu assim como ao olhar aquela senhora, não conseguia desgrudar os olhos daquele velho livro de capa de couro. Abri-lo seria como violar a intimidade daquela mulher. Havia um bloqueio em mim, ao mesmo tempo que um impulso irresistível. Pelo que imaginara eram mais de 400 páginas. Receberia o seguro desemprego por mais 5 meses, meus pais só chegariam no verão,e a primavera estava apenas por começar, eu tinha tempo, curiosidade e mais que isso, tinha um amor incontrolavel e desconhecido por aquela senhora dos brincos de pérolas e os olhos de gato.
Corri os dedos pela capa, sentindo as imperfeições e as variações de altura devidas às fotos, cartões postais, e tantas outras coisas que a senhora colara naquelas páginas. Não poderia resistir por muito mais tempo, fechei os olhos por um instante, lembrei da moça junto ao rapaz da foto em sépia, pelas roupas, provavelmente estavam na década de quarenta quando tiraram aquela foto. Abri o livro, não me surpreendi ao ver que as folhas que a senhora escrevera pouco antes de morrer estavam logo no começo, o papel branco e novo contrastava com o papel amarelado com cheiro de velho que revestia a capa.
"Não tenho certeza que lerá isso minha querida, talvez apenas jogue no lixo, talvez eu tenha me enganado com a expressão em seus olhos. Ou talvez eu simplesmente não precise lhe entregar isso, mas precisa ser feito. 1945 foi um ano glorioso se quer saber, mas ao mesmo tempo foi um ano carregado de dor. Não espere uma bela história que daria um romance aqui, nem uma grande história que sobrou da guerra, é apenas uma velha história que, assim como eu, já deve ter perdido seu espaço a algum tempo. Só lhe peço, que abra sua alma, que abra sua imaginação, para as lembranças de uma velha à beira da morte. Não julgue meus erros, eu era apenas uma garota, assim como você."
A letra corrida e bela continuava pela página, meus olhos se grudavam a cada palavra, mas depois desse parágrafo o resto não fez muito sentido para mim naquele dia. Apenas continuei, até criar a imagem de quem ela fora, antes de começar o diário. Seus cabelos iam até pouco abaixo de seus ombros, eram de um tom ébano lustroso, e seguindo a moda da época acabavam num delicado cacho. A pele era como porcelana em seu rosto fino, o nariz bem traçado era ofuscado pela magnifica cor de seus olhos. Quando começou o diário, é, realmente era um diário, estava com 17 anos e acabara de terminar o colegial, naquela época principiava a definir sua personalidade, e a conhecer seu destino. Eu poderia passar horas descrevendo-a, sem conseguir compreender realmente quem fora.
Começa aqui, a volta à uma realidade que eu nunca compreenderia, se não tivesse contemplado a face daquela mulher. Apenas mergulhando nessa época eu poderei tentar descrever quem foi Amélia Schovoieski, mais que uma sobrevivente, uma vencedora dos restos de uma guerra.
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A senhora no café. - Parte I

Era terça-feira à tarde, o café tinha alguns poucos perdidos, era periodo de aulas, os adolescentes que frequentavam a lan house que funcionava ali estavam em seus respectivos colégios. Havia uma velha senhora ali sentada, numa mesa um tanto quanto obscurecida, nada que desse medo, pelo contrário, alguns raios alaranjados de Sol iluminavam sua pele pálida, que um dia já fora uma porcelana, hoje carregava as marcas dos anos. Ela se vestia como uma avó deveria se vestir, usava brincos de pérolas, e um anel de diamante que não combinava muito com sua postura frágil, era um anel imponente, talvez de noivado, tinha um brilho e tanto. Ela folheava um livro amarelado, de capa de couro costurado, com aparência bem mais velha do que a própria mulher. Sorria em alguns instantes, tinha dentes fortes e retos, um dia aquele sorriso roubara corações, assim como aqueles grandes olhos verde-amarelados. Olhos que estavam distantes, olhando o nada, enquanto parecia lembrar de algo, eu daria qualquer coisa para ler tais lembranças em sua mente. Alguns meses como atendente num cyber-café e eu ainda não perdera o hábito de me encantar com as pessoas. A senhora voltou seu olhar diretamente para o meu, assustada eu disfarcei o meu interesse prolongado, mechendo em algumas xícaras ali, mas ela já havia me percebido. Levantou a mão e me chamou. Caminhei enquanto arrumava meu avental branco com manchas de café, ela sustentava um sorriso terno, naquele instante senti um carinho imenso, como se a conhecesse a muitos anos, sorri timidamente. Ela pediu um mocacinno, descafeínado, com creme. Acho que nunca esquecerei os detalhes daquele dia. Preparei o pedido dela o mais rápido possível, uma ansiedade tomava conta de mim, por algum motivo qualquer eu estava sendo impelida à ela. Voltei a mesa e entreguei o café, minha curiosidade me venceu e olhei por alguns segundos para o livro aberto sobre a mesa, parecia um diário, ou talvez uma agenda muito antiga, escrito à mão com tinta preta, uma letra bonita e corrida, havia uma foto colada a página, sépia, nela havia uma moça e um rapaz, os dois estavam sorrindo, abraçados, e eram lindos, havia também um trem atras deles, talvez estivessem indo viajar, talvez fosse a Lua-de-mel, talvez...
Desviei o olhar constrangida, mais uma vez a senhora havia reparado em toda a minha curiosidade, apenas sorri com a face avermelhada, virei-me e voltei ao meu posto. Não conseguia parar de observá-la. Ela tirou uma folha de dentro de sua bolsa, e uma bela caneta dourada e começou a escrever. Ficou quase uma hora ali nesse trabalho. Três folhas escritas e ela me chamou novamente. Caminhei até ela e perguntei novamente o que ela desejava. Sua voz falha não escondia a beleza que um dia ostentara. "Querida, qual seu nome?" meu coração acelerara enquanto respondi."Eu quero lhe dar um presente" ela disse, entendendo à mim o suposto diário e dentro dele as folhas que passara aquele tempo escrevendo "Não precisa ler se não quiser, apenas tenha-o" ela sorriu enquanto sua mão tocava a minha e então seus olhos perderam o brilho, enquanto fechava-os devagar, o sorriso ainda nos labios, e ela morreu.
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